“Passeio” de Debret
O Século XIX trouxe mudanças que poderiam ser comparadas às dores de crescimento da pré-adolescência. Se a revolução francesa, ocorrida no século XVIII, foi para o mundo ocidental um ritual de passagem de sua infância, o Século XIX viveria profundas turbulências antes de assimilar os conceitos fundamentais para uma nova ordem mundial, baseada nos direitos humanos. No horizonte do velho mundo, o Século XIX amanhece com um brilho que ofuscaria a luz daquelas idéias revolucionárias: Napoleão Bonaparte. Assim, em 1804, Napoleão se faz coroar Imperador da França. No mesmo ano, na Espanha, o pincel irreverente de Francisco Goya pinta a Maja Desnuda e a Maja Vestida. Por que mencionar a França? Por que mencionar Goya? Veremos a seguir.
O Brasil vivia nesse momento o esplendor do Barroco. Entre 1800 e 1805, o Aleijadinho cria sua famosa série dos Profetas; entre 1800 e 1809, Mestre Ataíde pinta o forro da nave da Igreja de São Francisco em Ouro Preto. O Barroco brasileiro adquirira feições próprias: as feições de uma nova cultura emergente. Em 1800 acontece a primeira iniciativa de ensino de arte no país com a Aula Pública de Desenho e Figura, no Rio de Janeiro, tendo por regente Manuel de Oliveira.
Em 1806, em Paris, na praça de l’ Étoile, inicia-se a construção do grande Arco aos Triunfos de Napoleão e em 1807 seus exércitos invadem Portugal. A família Real portuguesa retira-se para o Brasil com toda a Corte, chegando em nossa terra em 1808. No mesmo 1808 o povo de Madrid se insurge contra o exército francês que, reforçado por mercenários mamelucos e couraceiros, para compensar suas grandes baixas, ocupava a capital espanhola. O pintor Francisco Goya pinta esse momento de coragem na obra “El 2 de mayo de 1808 em Madrid”, coragem que será punida com o fuzilamento tácito, no dia seguinte, dos generais improvisados dentre o povo madrilenho. Goya registra esse fato entre 1814 e 1815 na obra “Os fuzilamentos do Três de Maio”.
Na América colonizada, crescem os movimentos libertários: no mesmo ano de 1808 Simão Bolívar ocupa Caracas e em 1810 acontece a insurreição geral na América espanhola.
Entre 1810 e 1814, Goya realiza sua série de gravuras “Os desastres da Guerra” onde documenta de forma jornalística as atrocidades cometidas na invasão da Espanha.
Em 1812 Napoleão marcha para a Rússia onde sofre uma importante derrota: dos 610 mil soldados arregimentados nessa campanha, apenas 100 mil sobreviveram. A invasão da Espanha e da Rússia praticamente exauriu todos os recursos da França.
Era o começo do fim. Em 1814 Napoleão renuncia pela primeira vez, com a tomada de Paris pelos russos e prussianos. No ano seguinte Napoleão, aclamado pelo povo, retorna a França e é restabelecido no poder. No entanto seu governo durou apenas cerca de 100 dias, quando foi derrotado na batalha de Waterloo e forçado a abdicar definitivamente.
A situação em Portugal está confusa e D. João VI eleva, em 1815, o Brasil à categoria de Reino Unido à Portugal e Algarves.
Com a queda de Napoleão Bonaparte, a Europa vive um período de caça a seus aliados. Assim, em 1816, um grupo de bonapartistas, liderado por Joachim Lebreton, homem que fora o Secretário Perpétuo da Classe de Belas Artes do Instituto Real da França e Conservador do Louvre e que fora destituído de seu cargo por sua recusa em devolver obras obtidas às custas dos espólios de guerra e da ocupação francesa, chega ao Brasil sob a proteção de D. João VI. Era a famosa Missão Artística Francesa: a maioria de seus membros artistas, alguns não.
A Missão Artística Francesa encontra no Brasil um Barroco vivo, vigoroso e dotado de autenticidade. A despeito disso, trabalha para introduzir o Neoclassicismo em nossa terra. A vinda da Missão Artística Francesa desagradou a todos: à corte portuguesa que não entendia porque D. João VI teria dado guarida a correligionários do inimigo vencido; aos artistas locais que sentem a imposição do neoclassicismo; ao povo que, de alma, por assim dizer, barroca por quase 200 anos, deve aceitar a imposição da nova estética que agora adornaria até mesmo as festas populares.
Esse é um contexto histórico de conhecimento imprescindível para que se entenda o processo de desenvolvimento de nossa arte e de formação de nossa cultura. A Missão Artística Francesa nos deixaria um importante legado. Contribuições de alguns membros da Missão ajudam-nos hoje a conhecer como era o Brasil daqueles tempos. Esse é o caso de Jean-Baptiste Debret, que embora não fosse um expoente da arte na França, tornou-se um repórter iconográfico do dia-a-dia de nossa gente nos tempos do Brasil colônia. A forte influência neoclássica, embora passasse a ser predominante, conviveria com as influências do Barroco, as dos povos africanos, dos povos indígenas, e de todas as outras culturas que vieram compor o caldo cultural brasileiro até que ele entrasse em ebulição com a semana de 22.
Geograficamente distante da Europa, em um tempo sem telecomunicações, a colônia é também mantida distante dos movimentos renovadores da arte ou, antes, da própria idéia de renovação. Assim, o desenrolar dos fatos artísticos no velho continente quase não seriam percebidos por aqui.
Já em 1816 a Missão Artística Francesa organiza e dirige a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios, onde ensinam arte segundo cânones neoclássicos. Em 1817 chega ao Brasil o pintor neoclássico austríaco Thomas Ender na expedição chefiada pelo Barão de Langsdorff, que trouxe Johann Von Spix e Carl Von Martius, dois dos maiores pesquisadores da fauna e flora brasileira. Ender realizará importante documentação iconográfica do cenário brasileiro. Enquanto isso, no mesmo ano na França, Théodore Géricault começa a pintar sua “Balsa da Medusa”: o Romantismo começa a tomar o espaço do Neoclassicismo.
Em 1821 a Corte retorna a Portugal e chega ao Brasil o artista alemão Johann-Moritz Rugendas, para integrar a missão de Langsdorff. Rugendas será outro importante repórter iconográfico do cotidiano do Brasil nascente.
Em 1822 é declarada a Independência do Brasil e na França Eugène Delacroix, outro mestre do Romantismo, apresenta sua obra “A Barca de Dante”.
A história não dá saltos e as transições acontecem em processos mais ou menos lentos. Na Europa o Romantismo convive com o Neoclassicismo. Em 1826 a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios Por aqui, transforma-se na Imperial Academia e Escola de Belas Artes, sob orientação dos homens da Missão. O Barroco ainda conviveria com o Neoclassicismo em manifestações artísticas, como na obra “Ceia” de Mestre Ataíde, pintada em 1828 no Seminário do Caraça. Em 1829 acontece a primeira exposição pública de arte no Brasil, organizada por Debret.
Em 1830, na França, acontece uma revolução de três dias que depõe Carlos X, que suspendera a liberdade de imprensa, dissolvera a Câmara e modificara as eleições. Esses dias entrariam para a história com o nome de “As três Gloriosas”. No Brasil, D. Pedro I abdica em 1831, sob a pressão do povo que defendia a necessidade de um governo republicano e da imprensa que pregava “o dever sagrado da resistência à tirania” e se retira para a Europa. Embora a tônica fosse a liberdade, o momento histórico do Brasil e da França, guardam diferenças de maturidade com nações e como povos.
Em 1834, na França, Delacroix exibe seu “As Mulheres de Argel”, resultado de sua visita ao Marrocos em 1832, onde executou uma série de desenhos e aquarelas sobre os costumes pitorescos dos árabes. Da mesma forma, em 1834, Debret publica na França seu livro “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil” com aquarelas sobre o novo mundo. Assim também o fez Rugendas, publicando em 1835 o seu “Viagem Pitoresca Através do Brasil”. O Exótico era apelo mais forte dessas obras. A diferença fundamental entre elas está no fato que Rugendas e Debret apresentam trabalhos de orientação Neoclássica e Delacroix, um trabalho Romântico influenciado por Géricault.
Em 1840, D. Pedro II torna-se Imperador do Brasil, depois de ter sua maioridade declarada. Em 1845, instituiu o prêmio de viagem à Europa, que levou para estudar especialmente na França vários de nossos artistas. Embora a formação oferecida fosse Neoclássica, ir até lá e ver o que estava acontecendo no universo das artes, acabaria por trazer novas influências para a arte brasileira. Durante o Século XIX, surgiriam na Europa artistas como William Turner que se libertam da linguagem Neoclássica enfurecendo a crítica e, ao mesmo tempo, obtendo grande sucesso junto ao público. Surgem movimentos artísticos como o Impressionismo, o Realismo, o Expressionismo. Assim veremos na produção artística dos grandes mestres brasileiros alterações e atrevimentos, em relação ao rígido Neoclassicismo, que embora não lograssem uma mudança radical, preparariam o solo das artes para as propostas do Modernismo.
Foram expoentes do período os artistas: Pedro Américo, Vitor Meireles, Zeferino da Costa, Almeida Júnior, Rodolfo Amoedo, Goerge Grimm y Gomes, Castagneto, Rodolfo Bernardelli, Henrique Bernardelli, Belmiro de Almeida, Décio Vilares, Modesto Brocos, João Batista da Costa, Antônio Parreiras.