Decifrando o Valor da Obra de Arte

– Um pouco mais sobre a “Avaliação de uma Obra de Arte” –

Ouvimos muito perguntas como “por que essa obra é tão cara e aquela outra tão mais barata, se as duas são feitas com o mesmo material, têm o mesmo tamanho e são belas obras?” ou então “por que um esboço feito em um pedaço de papel qualquer, por determinado artista, custa tão mais caro que uma tela pintada com esmero por outro artista?”

Essas questões realmente parecem confusas ou sem sentido para aqueles que não conhecem o mercado da arte. Vamos tentar esclarecer o assunto com uma analogia entre a obra de arte e uma tenda de acampar.

Vamos relacionar os materiais de que é feita determinada tenda de acampar e a qualidade de sua fabricação aos materiais de que é feita uma obra de arte e à qualidade de sua execução. A qualidade desses materiais e da confecção, indicam se a tenda de acampar poderá durar muito e a obra de arte também.

Então estabelecemos a primeira relação: qualidade material da tenda e qualidade material da obra de arte.

Para que a nossa tenda fique de pé ela precisa de amarras. São as amarras que mantém suas estruturas na posição correta para que ela não colapse. Vamos chamar esse posicionamento correto das estruturas de coerência estrutural. Vamos comparar essas amarras às propostas do artista autor da obra de arte. É a coerência de suas propostas, que estrutura sua obra como um todo. Mesmo quando o artista abandona uma proposta e parte para outra, existe uma coerência em sua nova proposta. Geralmente chamamos essa nova proposta coerente de “fase” do artista. Mesmo em artistas que romperam diversas vezes com sua fase anterior, criando uma aparente descontinuidade, podemos ver claramente uma grande coerência em cada fase e uma ligação entre suas fases, cujo elemento catalizador dessa ligação está quase sempre nas experiências vividas pelo artista.

Então estabelecemos a segunda relação: as amarras da tenda à coerência estrutural da obra ou das fases do artista.


Tenda fixada na grama por amarras

Para que as amarras cumpram sua função, elas precisam de ancoragem. São as ancoragens que vão permitir a conexão das outras pontas das amarras ao chão. Vamos comparar a ancoragem de nossa tenda à ligação da obra com suas propostas e com o público. Como escrevemos no item 9 do texto “Avaliação de uma Obra de Arte”, uma obra citada ou reproduzida em catálogos ou livros tem seu valor majorado, além de estar mais segura, porque criou maior empatia com o público. A qualidade fundamental para criar essa empatia não é a forma física da obra, sua linguagem, mas a sua verdade. Quando o artista expressa sua verdade na obra que produz, ela simplesmente encanta. Alguns irão gostar, outros não, mas ela é dotada de uma consistência quase inexplicável.

Então estabelecemos a terceira relação: a ancoragem da tenda com a verdade do artista que estabelece empatia com o público. Essa verdade pode ser uma verdade intelectual, uma verdade sentimental ou, como acontece com os mestres, as duas ao mesmo tempo. Vamos chamar esse conjunto de verdade espiritual.


Tenda sendo arrancanda da areia pelo vento, devido à má ancoragem.

E para que tudo isso funcione, ou seja, para que mesmo com qualidade material e técnica, mesmo com coerência estrutural (amarras), mesmo com verdade espiritual, nossa tenda não colapse, precisamos um solo firme para ancorá-la. A mesma tenda ancorada na rocha, terá menos confiabilidade se ancorada na grama e menos ainda se ancorada na areia fofa da praia, porque um vento forte poderá soltá-la. Vamos comparar o solo à carreira do artista. Não a carreira vista apenas pelo aspecto curricular, de participações em eventos de arte, mas na ligação de sua produção artística com suas pesquisas, seu aprendizado, seus exercícios, suas tentativas, seus sofrimentos, sua vida como um todo. Para o artista, a arte que produz é uma forma de se relacionar com a vida e é a esse conjunto que chamamos de “base”. Quanto mais comprometida com sua expressão artística for a trajetória de vida do artista, mais sólida é sua base.

Então estabelecemos a quarta relação: a estabilidade do solo onde ancoramos nossa tenda com a solidez da base do artista.


À esquerda, areia fofa – à direita, grama.

Se uma obra de arte é de um artista que imprimi sua coerência estrutural; que expressa sua verdade sem prestar atenção no que se imagina que o mercado “gostaria” e acaba criando empatia com o público; se a obra é construída com a verdade pessoal do artista, que faz com que ela emane solidez; e se, como se não bastasse, ainda tiver sido feita com materiais de qualidade e com procedimentos tecnicamente bons, o que chama a atenção dos investidores pelo potencial de maior perenidade, sua obra será percebida pela história como uma obra de alto valor e esse valor acabará se refletindo no preço da obra.

Ah, sim, é verdade: é preciso vender a barraca. Van Gogh, por exemplo, tinha tudo isso: qualidade material e de execução, enorme coerência estrutural, verdade espiritual, uma base muito sólida porque era um estudioso do que fazia, mas morreu pobre. Aqui entram outras questões que valeriam um livro. A julgar pela quase unânime empatia que suas obras têm com o público nos dias atuais, seja nos museus, nas exposições, nos livros, nos calendários onde as estampam, é fácil perceber que ele era um artista à frente de seu tempo. Um estigma que marca os gênios.

O título deste artigo é uma provocação que convida o leitor a refletir sobre o “valor”, o “preço” (valor econômico ou de mercado) de uma obra de arte e a relação entre esses dois conceitos. Muitas vezes o valor da obra é percebido pela crítica, pelo público e, consequentemente, pelo mercado em momentos diferentes. Às vezes tarde demais para o artista.

Além disso, temos uma questão que já existia no tempo de Van Gogh, mas que se hipertrofiou nos dias atuais com agilidade e universalidade da comunicação: o marketing. Podemos entender que o mercado de arte, como mercado, está sensível ao que é desejado e nos dias atuais muitas vezes o desejo é induzido pelas sofisticadas técnicas de divulgar uma “mercadoria”, muitas vezes subliminares. E mais do que em qualquer tempo, nesses tempo de modernidade líquida, como analisou Zygmunt Bauman, a arte é tratada como mercadoria para consumo rápido, o que por um lado aumenta o risco para o artista sólido, que precisa de consumidores intelectualmente mais sofisticados. Se isso aumenta ou diminui o valor de mercado de suas obras, só mesmo analisando o comportamento do mercado de arte, de como sua obra é recebida, dos valores monetários que ela realiza nesse mercado. Para o avaliador, um trabalho incessante de pesquisa.

Mas voltando às perguntas iniciais: “por que essa obra é tão cara e aquela outra tão mais barata, se as duas são feitas com o mesmo material, têm o mesmo tamanho e são belas obras?” ou então “por quê um esboço feito em um pedaço de papel qualquer, por determinado artista, custa tão mais caro que uma tela pintada com esmero por outro artista?”


Tenda simples ancorada em solo firme.

Aplicando nossa analogia com a tenda de acampar…

  • Materiais bons com amarras e ancoragens ruins a tenda colapsa.
  • Materiais bons, amarras e ancoragens boas em solo ruim – a ancoragem se solta e a tenda colapsa.
  • Materiais ruins, amarras e ancoragens ruins e solo ruim – trabalho amador, sem a menor consistência. Colapsa.
  • Materiais ruins, amarras e ancoragens boas, mas solo ruim – sucesso efêmero. Se degrada e colapsa com instabilidade da base. Acaba esquecido pelo mercado.
  • Materiais e procedimentos bons, amarras e ancoragens boas e solo bom – uma obra de arte que se valoriza no mercado.
  • Materiais ruins, amarras e ancoragens boas e solo bom – mantém valor de mercado e se valoriza.

É por isso que um esboço feito em um guardanapo de papel, por exemplo, por Picasso tem um alto valor de mercado: porque apenas o material era ruim, mas pode ser conservado, pode ser reproduzido, enquanto a coerência estrutural de sua obra ou da fase de sua obra (amarras) é forte; a verdade espiritual de sua obra (ancoragem) é profunda; a solidez da base desse artista é indiscutível e o marketing que se fez em torno dela, a partir da empatia, foi poderoso. Enfim, é um Picasso.


Gravura “Pomba da Paz”
Um símbolo criado por Pablo Picasso em Wroclaw, Polônia, em 1949.
Reza a lenda que Picasso criou esse símbolo nos guardanapos do Hotel Monopol.
Picasso desenhou para o Movimento pela Paz até 1962.